A questão dos direitos dos homossexuais e do combate à homofobia é bastante simples: a direita religiosa não tem argumentos, apenas uma retórica vazia e um discurso que mal esconde seu ódio e sua intenção de impor a moral de uma religião à sociedade como um todo. A campanha contra o
PLC 122, chamado por seus detratores de “AI-5 gay”, se baseia unicamente na vontade destes grupos de manter seu suposto “direito à homofobia”, direito assegurado por uma interpretação particular de textos supostamente ditados por uma suposta divindade a um chefe tribal, há alguns milhares de anos em um deserto distante.
Por incrível que pareça, dentre os comentaristas ligados à igreja é Reinaldo Azevedo quem mantém a posição mais liberal. Mesmo assim o comentarista, que gosta de se dizer “partidário da lógica”, é incapaz de tratar a legislação proposta em termos aceitáveis. Como Reinaldo gosta de um vermelho e azul, faço o mesmo aqui com seu
artigo mais recente sobre o assunto. Ao contrário dele, por motivos afetivos eu escrevo em vermelho e deixo o texto original em azul (já que pintar texto de arco-íris é complicado demais, os artigos citados do projeto de lei vão em rosa).
A Lei nº 7716 é uma lei contra o racismo. Sexualidade, agora, é raça? Ora, nem a raça é “raça”, não é mesmo? Salvo melhor juízo, somos todos da “raça humana”. O racismo é um crime imprescritível e inafiançável, e entrariam nessa categoria os cometidos contra “gênero, orientação sexual e identidade de gênero.”
Para começar, a Lei nº 7716 não é mais uma lei contra o racismo, é uma lei contra a discriminação. Em sua redação atual, o artigo 1º diz “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.“ Ou seja, a lei protege vários grupos específicos (negros, indígenas, imigrantes, religiosos etc) contra discriminação e preconceito. A redação proposta acrescenta à lista “gênero, orientação sexual e identidade de gênero.”, estendendo a proteção da lei às mulheres em geral e também aos gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais.
E só para não deixar passar a bola quicando na área, é claro que “raça” não é um conceito biológico como os nossos “positivistas” da democracia racial gostam de propalar. E que o racismo de uma sociedade não deixa de existir quando se demonstra que não há diferença genética entre brancos e negros, por exemplo. Mas isto eu trato em outro post.
Leiam um trecho do PL 122:
Art. 4º A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1999, passa a vigorar acrescida do seguinte Art. 4º-A:
“Art. 4º-A Praticar o empregador ou seu preposto atos de dispensa direta ou indireta: Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco)anos.”
Art. 5º Os arts. 5º, 6º e 7º da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1999, passam a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 5º Impedir, recusar ou proibir o ingresso ou a permanência em qualquer ambiente ou estabelecimento público ou privado, aberto ao público: Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos.”
Para demitir um homossexual, um empregador terá de pensar duas vezes. E cinco para contratar — caso essa homossexualidade seja aparente. Por quê? Ora, fica decretado que todos os gays são competentes. Aliás, na forma como está a lei, só mesmo os brancos, machos, heterossexuais e eventualmente cristãos não terão a que recorrer em caso de dispensa. Jamais poderão dizer: “Pô, fui demitido só porque sou hétero e branco! Quanta injustiça!”. O corolário óbvio dessa lei será, então, a imposição posterior de uma cota de “gênero”, “orientação” e “identidade” nas empresas. Avancemos.
O artigo 4º da lei original diz “Negar ou obstar emprego em empresa privada.“. É óbvio aqui do que se trata: apenas acresce-se a previsão de demissão por discriminação. Ora, nada no texto torna negros, lésbicas ou evangélicos magicamente intocáveis (sempre lembrando que discriminação por religião faz parte do objeto da lei, algo que seus críticos adoram esquecer). Nada impede que os integrantes dos grupos protegidos pela lei sejam demitidos por incompetência ou por necessidades de mercado de uma empresa. O que lei busca impedir é que uma empresa decida demitir um empregado por sua orientação sexual. Ou por sua religião. Ou pela cor de sua pele. Qual o problema? Aliás, a frase “O corolário óbvio dessa lei será, então, a imposição posterior de uma cota de...” é apenas outro artifício do articulista para misturar outro assunto no debate. Por acaso há cotas para negros em empresas privadas? Ou para Testemunhas de Jeová? Pois a lei original está em vigor desde 1997...
“Art. 6º Recusar, negar, impedir, preterir, prejudicar, retardar ou excluir, em qualquer sistema de seleção educacional, recrutamento ou promoção funcional ou profissional: Pena - reclusão de 3 (três) a 5 (cinco) anos. ”
Cristãos, muçulmanos, judeus etc têm as suas escolas infantis, por exemplo. Sejamos óbvios, claros, práticos: terão de ignorar o que pensam a respeito da homossexualidade, da “orientação sexual” ou da “identidade de gênero” — e a Constituição lhes assegura a liberdade religiosa — e contratar, por exemplo, alguém que, sendo João, se identifique como Joana? Ou isso ou cana?
Exatamente! Isso “dá cana” e é assim que deve ser. A lei impede que a orientação sexual de alguém seja sequer considerada em um processo seletivo. Ou a cor da pele. Ou a etnia. O uso do exemplo extremo, de um travesti se candidatando a uma vaga de professora em uma escola infantil muçulmana, está aí apenas para chocar e esconder a essência do texto, cujo objetivo é claro: impedir que um banco ou um supermercado, por exemplo, desclassifiquem candidatos a vagas por sua orientação sexual. E vale a pena lembrar sempre que a discriminação que cerca os travestis hoje no Brasil praticamente os exclui do mercado de trabalho regular (exceto em ocupações e setores muito específicos).
Art. 7º A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passa a vigorar acrescida dos seguintes art. 8º-A e 8º-B:
“Art. 8º-B Proibir a livre expressão e manifestação de afetividade do cidadão homossexual, bissexual ou transgênero, sendo estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos ou cidadãs: Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.”
Pastores, padres, rabinos etc. estariam impedidos de coibir a manifestação de “afetividade”, ainda que os fundamentos de sua religião a condenem. O PL 122 não apenas iguala a orientação sexual a raça como também declara nulos alguns fundamentos religiosos. É o fim da picada! Aliás, dada a redação, estaríamos diante de uma situação interessante: o homossexual reprimido por um pastor, por exemplo, acusaria o religioso de homofobia, e o religioso acusaria o homossexual de discriminação religiosa, já que estaria impedido de dizer o que pensa. Um confronto de idéias e posturas que poderia ser exercido em liberdade acaba na cadeia.
De fato é o fim da picada! Imagine, dois homens se beijando em uma praça pública ou duas mulheres de mãos dadas em um bar não vão poder ser incomodados por um fanático religioso que queira condená-los ao fogo eterno do inferno aos berros! Veja que isto em nada fere os tais “fundamentos religiosos”. Padres, pastores, rabinos podem continuar condenando o homossexualidade entre seus fiéis. Podem continuar considerando pecaminosas as relações homoafetivas. Agora, se o seu “fundamento religioso” exige que você vá a público reprimir in loco o comportamento de pessoas que sequer seguem a sua religião, então nós temos um problema de outra ordem. As democracias ocidentais não permitem o apedrejamento de prostitutas, ainda que o Velho Testamento da Bíblia o exija. Não se permite também a queima de bruxas. Ou a tortura de infiéis. Eu já li que este artigo “impediria o padre de proibir dois homens de se beijarem no pátio de sua igreja”. Ora, basta ler ali, na lei: “sendo estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos ou cidadãs” Um casal heterossexual pode se beijar no pátio da igreja? Se a resposta é afirmativa então realmente o mesmo vale para casais homossexuais.
Mas o AI-5 mesmo vem agora:
“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero:
§ 5º O disposto neste artigo envolve a prática de qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica.”
Não há meio-termo: uma simples pregação contra a prática homossexual pode mandar um religioso para a cadeia: crime inafiançável e imprescritível. Se for servidor público, perderá o cargo. Não poderá fazer contratos com órgãos oficiais ou fundações, pagará multa… Enfim, sua vida estará desgraçada para sempre. Afinal, alguém sempre poderá alegar que um simples sermão o expôs a uma situação “psicologicamente vexatória”. A lei é explícita: um “processo administrativo e penal terá início”, entre outras situações, se houver um simples“comunicado de organizações não governamentais de defesa da cidadania e direitos humanos.” Não precisa nem ser o “ofendido” a reclamar: basta que uma ONG tome as suas dores.
Em primeiro lugar, vamos combinar que permitir que uma entidade beneficiada por isenção fiscal mantenha programas de televisão pregando o ódio e a discriminação contra um grupo de cidadãos não é tolerável nem “simples”. Qual deveria ser nossa postura se uma igreja qualquer, com base em algum livro considerado sagrado por ela, começasse a pregar que os negros devem ser relegados a serviços braçais por serem inferiores aos brancos? E se outra igreja começasse a pregar o espancamento de mulheres que saiam às ruas sem véu? Por que então devemos tolerar, como contribuintes e como cidadãos, que uma igreja tenha o direito de atacar de forma genérica o homossexualidade e os homossexuais?
Há também outro detalhe: o artigo protege da mesma forma todos os grupos citados. Inclusive os religiosos. Mas infelizmente os religiosos não estão preocupados com a justiça e sim com a manutenção de seu direito sagrado de fazer exatamente o que a lei proíbe, ou seja, praticar, induzir ou incitar a discriminação a homossexuais.
Não há mesmo meio termo aqui. Ou você concorda que há inúmeras formas de expressão da sexualidade humana e que qualquer discriminação por gênero, orientação sexual ou identidade de gênero é inaceitável ou você é obrigado a torcer a lógica até o limite e invocar uma liberdade de expressão ou de religião para proteger seu medo e seu ódio ao outro, ao diferente.
Reinaldo conclui:
O PL 122 é uma aberração jurídica, viola a liberdade religiosa e cria uma categoria de indivíduos especiais. À diferença de suas “boas intenções”, pode é contribuir para a discriminação, à medida que transforma os gays numa espécie de “perigo legal”.
Estranhamente, a lei de 97 não transformou os evangélicos, os negros ou os judeus em um “perigo legal”, transformou? As empresas deixaram de contratar evangélicos por temerem não poder demiti-los? Acho que não.
Como eu disse no início, Reinaldo é uma das vozes conservadoras menos estridentes neste caso. Em outro trecho do mesmo artigo comentado acima ele escreve:
Leitores habituais deste blog já me deram algumas bordoadas porque não vejo nada de mal, por exemplo, na união civil de homossexuais — que não é “casamento”. Alguns diriam que penso coisa ainda “pior”: se tiverem condições materiais e psicológicas para tanto, e não havendo heterossexuais que o façam, acho aceitável que gays adotem crianças. Minhas opiniões nascem da convicção, que considero cientificamente embasada, de que “homossexualidade não pega”, isto é, nem é transmissível nem é “curável”. Não sendo uma “opção” (se fosse, todos escolheriam ser héteros), tampouco é uma doença. Mais: não me parece que a promiscuidade seja apanágio dos gays, em que pese a face visível de certas correntes contribuir para a má fama do conjunto.
Ou seja, ele não tem nada contra a união civil e acha “aceitável” que casais homossexuais adotem crianças (mas não em igualdade de condições, só “não havendo heterossexuais que o façam”). Digamos que em Reinaldo a homofobia é um traço quase imperceptível, escondido sob um discurso marginalmente racional. Sua crítica, ainda que inválida e algumas vezes enganosa, é quase totalmente isenta de argumentos metafísicos e religiosos (observe que o argumento a favor da pregação religiosa não é em si religioso).
Mas a conclusão final de Reinaldo contra o PL 122 é que ele “causa” discriminação. A malícia deste tipo argumento é óbvia: não existe discriminação, é apenas a lei contra a discriminação que “obriga” os outros atores sociais a se afastarem daquele grupo. É um argumento análogo ao argumento contra cotas raciais, elas seriam “racistas”. Como respondeu um líder negro em um debate, por esta lógica você garantir 10% das vagas de uma universidade para afrodescendentes é racista, você não ter nenhum negro naquela universidade não é. Neste caso, permitir que as igrejas continuem a propalar seu discurso de ódio contra os homossexuais, permitir que os LGBT sejam preteridos em contratações e promoções, permitir que homossexuais sejam mortos (ou agredidos em plena Av. Paulista) apenas por sua orientação sexual, isto não é homofóbico. A lei que puniria tais crimes é que causará o surgimento da homofobia em nossa sociedade tão liberal e compreensiva...
Pesquei o presente artigo no
Biscoito Fino e a Massa