O Brasil é um país que vive de contradições. Embora não sejamos apenas nós, é preciso ser honesto e reconhecê-lo. Mas o fato é que convivemos com contradições gritantes, absurdas na verdade, as quais encaramos como se integrassem a mais perfeita normalidade das coisas.
Tomemos como um exemplo banal, dentre tantos com que já estamos tão acostumados, algo que aconteceu com minha esposa esta semana. Grávida, entrando no oitavo mês de gestação, ela estava comprando umas coisinhas num supermercado local, quando, ao se dirigir à fila especial para gestantes, deparou-se com uma jovem, na casa dos vinte anos, que não era nem idosa, nem deficiente, nem estava grávida (ao menos não que se o pudesse notar), passando todo um carrinho cheio de compras exatamente naquela fila. Quando minha esposa perguntou-lhe por que havia entrado numa fila para pessoas em condições especiais, a mulher se sentiu indignada com a petulância de quem estava colocando em questão sua atitude. Ela estava com pressa, afinal de contas; não podia esperar o andamento nas filas das outras caixas. Enfim, é assim que as coisas são por aqui: quando reivindica um direito seu, você é uma barata asquerosa incomodando a vida de alguém. (De fato, já tratei do assunto noutro texto, como sabem: A luta pelos direitos.)
Agora, pense em viver numa sociedade como esta, sob um Estado que, aparentemente, sofre de um transtorno dissociativo de identidade (aquilo que costumamos chamar de dupla personalidade)! Afinal, se já é difícil exigir o respeito àquilo que é um direito seu, por força da cultura relacional estabelecida neste país, imagine como a coisa se complica ainda mais quando o Estado, que deveria fazer cumprir cada direito garantido por lei, comporta-se, ele mesmo, ora respeitando o que dispõe nosso ordenamento jurídico, ora agindo na contramão dessas disposições, fingindo que não sabe, que não viu.
Num exemplo louvável, aos 26 de agosto de 2010, o então presidente sancionou a Lei No12.318, que visa a coibir o ato de alienação parental, isto é,
a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este (Lei 12.318, art. 2º).
E por é que estou citando esta lei aqui? Ora, simples! Porque ela leva em conta um fato de extrema relevância: crianças são psicologicamente vulneráveis ao argumento dos adultos, especialmente dos pais. No caso de uma separação que gera ressentimento por parte de pelo menos um dos ex-cônjuges, situação não raro acompanhada de uma ânsia por vingança, se esta pessoa magoada e vingativa é a mesma que detém a guarda do filho menor, sabe-se que pode “envenenar” a criança contra o outro genitor. Inúmeros são os casos de SAP (Síndrome da Alienação Parental) provocada por pais sediosos de promoverem algum tipo de desforra contra o ex-cônjuge, os quais então enchem a cabeça vulneránel (pois ainda imatura e acrítica) do filho com ideias errôneas e deturpadas a respeito do outro genitor. “Seu pai não vale nada! Ele não dá a mínima pra você!” Enfim, todos conhecemos histórias assim.
A Lei 12.318 traduz a ação mais do que necessária do Estado, dando um basta a essa atitude que, sob a égide do mais puro egocentrismo, produz terríveis efeitos negativos (às vezes, irreparáveis) não apenas sobre a pessoa a quem se almeja atingir diretamente, mas também sobre uma terceira pessoa, vítima inocente dessa conduta repugnante e condenável pelos mais diversos prismas pelos quais seja apreciada. Aqui, vemos um Estado que age a favor da proteção da integridade psicológica dessas crianças, tal como deveria ser sempre o seu papel.
Mas, então, o problema aparece quando esse mesmo Estado que reconhece que adultos podem se aproveitar do desenvolvimento cognitivo imaturo das crianças — propensas a acreditarem no que aqueles lhes dizem ser verdade —, para assim manipular as crenças destes inocentes, é também o que considera legítima a doutrinação religiosa de crianças, não apenas na esfera doméstico-familiar, mas também nas salas de aula das escolas públicas. E o que dizer quando um ex-ministro do STF, o tribunal “guardião de nossa Constituição”, aparece na imprensa tendo um chilique pelo único fato de a Procuradoria-Geral da República ter proposto uma ADIn (Ação Direta de Inconstitucionalidade), a fim de que seja estabelecido que o ensino religioso facultativo nas escolas seja apenas de natureza não confessional. E vejam bem: nem sequer se está colocando em questão a constitucionalidade desse ensino de matrícula facultativa. A única reivindicação é a de que os professores da disciplina não sejam representantes das confissões religiosas. Ora, nem é uma iniciativa tão revolucionária assim, convenhamos!
Bem, não é o que pensa o ex-ministro Eros Grau — aquele mesmo que, quase na data de se aposentar compulsoriamente, tomou uma atitude polêmica ao requerer antecipadamente sua aposentadoria, de modo a não ter de votar quando da decisão da Corte Suprema sobre a lei da ficha limpa, manobra esta que possibilitou o empate na votação dos ministros e o atraso na aprovação da lei, permitindo que inúmeros políticos “sujos” fossem reeleitos. Pois é esse senhor, de conduta e caráter inquestionáveis, católico praticante, a propósito, que ficou indignado com a ADIn proposta pela PGR. Num artigo na Folha de S. Paulo, Eros Grau escreveu:
A Procuradoria-Geral da República admite o ensino da religião como formação cultural. Mas a religião há de ser ensinada nas escolas, segundo ela, por professores “não confessionais”, ou seja, por professores não vinculados a qualquer religião, sem religião.A ação proposta pela Procuradoria-Geral da República aponta contra o acordo Brasil/Santa Sé e é, de fato, um panfleto anticlerical. Um panfleto no mínimo anticatólico.
Apelando para argumentos ridículos, como a falácia do espantalho contida em outros trechos como “A laicidade do Estado não significa inimizade com a fé“, o ex-ministro mostrou-se revoltado com a ideia de que professores da disciplina de religião nas escolas não possam ser representantes das religiões que professam. Todavia, como contra-argumenta o procurador-geral da República Daniel Sarmento,
a escola pública não é lugar para o ensino confessional e também para o interconfessional ou ecumênico, pois este, ainda que não voltado à promoção de uma confissão específica, tem por propósito inculcar nos alunos princípios e valores religiosos partilhados pela maioria, com prejuízo das visões ateístas, agnósticas, ou de religiões com menor poder na esfera sócio-política.
Pois é! O nome que damos a posturas como esta é sensatez. Mas, infelizmente, a maior parte da imprensa, da população deste país semianalfabeto (onde poucos entendem o sentido de laicidade estatal), bem como a maioria dos acadêmicos dos cursos de Direito e dos juristas renomados desta terra de contradições, estão do lado de Eros Grau. Já estamos habituados a ver coerência nesses paradoxos. Isto é, por um lado, crianças são seres imaturos, vulneráveis à inculcação de crenças deturpadas contra um de seus genitores por parte de algum adulto sob cuja responsabilidade estejam. Por outro lado, não há nada de condenável em que se inculque nesses mesmos seres imaturos e psicologicamente vulneráveis crenças religiosas específicas, que falem de pecado em atos que são tão somente naturais e danação eterna num inferno repleto de demônios, tormento e “ranger de dentes”, bem como prometam recompensa post mortem num suposto paraíso celeste, condicionada à submissão e aceitação dessa “verdade” inquestionável da fé.
Ora, que um adulto seja exposto a essas informações e aceite tudo como uma “realidade” à qual pretende devotar o resto de sua vida, é um direito que, em hipótese alguma, lhe poderia ser negado — desde que não tente se valer desse direito à liberdade de crença para questionar posteriormente outros direitos civis ou constitucionais de outras pessoas. Agora, realmente não vejo por que uma criança não possa ter suas crenças pessoais acerca de um de seus pais manipulada segundo a vontade de outros adultos com os quais convive, mas pode ter suas crenças acerca da natureza do universo, da origem da vida, dos valores morais, do que é “certo e errado para todo mundo” etc., todas moldadinhas conforme a vontade de seus pais, líderes religiosos e professores, embora sejam ainda tão imaturas para avaliar criticamente essas informações.
Falando francamente, não sou contra aulas de religião na escola, como fonte de informação sobre essas mitologias concebidas em praticamente todas as culturas, deixando claro que cada uma delas reivindica, em pé de igualdade de valor, o papel de explanadora de como e por que as coisas são como são, e que nenhuma é melhor do que a outra nesse sentido. Se essas aulas fossem para falar das diversas religiões, com a mesma impessoalidade e o mesmo distanciamento passional com que aprendemos sobre lendas folclóricas (boitatá, mula sem cabeça, os sacis etc.), acho que seria até culturalmente enriquecedoras. Agora, quando são meros instrumentos para abrir brechas para a doutrinação religiosa infanto-juvenil, numa versão de catecismo convertido em disciplina escolar, aí não há mesmo como não condenar a prática. Não é o que se espera sob um Estado realmente laico.
Isso não significa fazer do Estado “inimigo da fé”. Significa apenas acabar com essa mania de não nos levarmos a sério e descontaminar de vez nosso ordenamento jurídico da influência do cristianismo que historicamente nele se imiscuiu.
Autor: Camilo Gomes Jr.
Fonte: Bule Voador
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