Por Alex Antunes
O Brasil é um país feminino. Muito da sua propensão ao caos, à ineficiência formal, à falta de pragmatismo, da sua disposição quase infinita em girar em círculos, tem raízes num certo tribalismo maldigerido, que não deixa de conectar com funcionamentos e tolerâncias matriarcais. O lado bom disso é que o Brasil é um país em que a existência na matéria não é malvista, nem sectária: a exibição (e uso) do corpo humano, e particularmente do feminino, não é muito hostilizada (pelo contrário, é incentivada inclusive nas suas versões mais fúteis), e a idiossincrasia e independência de pensamento e de comportamento chega a ser mais do que tolerada (nós listamos entre nossos principais artistas e intelectuais celebradores da miscigenação tropical e até da indolência criativa, como Darcy Ribeiro, Zé Celso, Jorge Mautner, Glauber Rocha etc).
Assim, apesar de ser um país violentíssimo, o é principalmente nas esferas controladas por homens: política, negócios, crime, esporte. Na vida cotidiana, mesmo os ambientes mais opressivos, como as favelas, são “temperados” por uma presença feminina – a mãe, a namorada, a irmã – que humaniza os tipos e os comportamentos mais truculentos. Aqui não soa estranha a frase de que todos os bandidos – e todos os políticos, por sinal – têm mãe (enquanto Hitler, por exemplo, obviamente não teve). Não estou dizendo que não seja uma terra machista. As mulheres espancadas, atraídas à prostituição, desrespeitadas na sua dignidade e inteligência, bem o sabem. Mas também não é o inferno que poderia ser, se as mulheres, de alguma maneira, não tivessem imposto o suficiente a sua presença e os seus critérios afetivos.
Nossas classes mais desfavorecidas não se entregam totalmente à misoginia que vemos no oriente médio ou na África (em diferentes versões, a moralista e a amoralista); nossas classes médias não se entregam totalmente ao fundamentalismo religioso, político e comportamental que vemos nos Estados Unidos; nossa elite gera quadros políticos como Dilma e Marina que, para combater, o candidato mais à direita (Serra) teve que conjurar um atraso de décadas no desenvolvimento sociocomportamental, levando artificialmente ao centro do debate e tratando a questão do aborto como se faria nos anos 50. Como sintoma de que ele estava tentando evitar – e não conseguiu –, a eleição de Dilma, não deixa de ser um processo interessante. Assustador e perigoso, mas interessante. Em sua manobra obscurantista, Serra não estava atacando Dilma por ser intelectual de esquerda e, portanto, defender possivelmente o direito ao aborto. Serra estava atacando Dilma por ser mulher sem marido e, portanto, possivelmente fazer sexo sem reproduzir. Uma abortadeira, para não dizer coisa pior. Esse foi o subtexto que, felizmente, este Brasil feminino derrotou.
É por isso que os assassinatos na escola de Realengo, no Rio, são tão inquietantes. O (até então) anônimo Wellington conseguiu o que nem José Serra havia conseguido: atingiu o Brasil em seu coração feminino, afetivo. Porque esses assassinatos se destacam tanto em um país de tanta violência? Porque este é caso mais estrondoso desde que uma criança foi morta e arrastada pelos assaltantes que roubaram o carro em que ela estava, e desde que outra criança foi morta arremessada de uma janela por seu pai e sua madrasta? Por causa da notável clareza com que Wellington se expressou em sua história pessoal, em seus tiros e em sua carta de despedida. Criança adotada, solitária e sexualmente recalcada, após a morte da mãe, Wellington se refugiou na Internet para cultivar sua personalidade rancorosa. Pensava em (misógina glória!) cometer atos terroristas como derrubar aviões – cuja simbologia, assim como derrubar torres e proibir cigarros, é obviamente a castração. Foi à escola onde estudou, com suas duas armas (dois pênis, impossibilidade alquímica), matar pré-adolescentes bonitas e espertas (como bonitas, espertas e sexies, apesar de tudo, são tantas das moças das nossas classes mais pobres).
E deixou uma carta que é um modelo perfeito do pensamento masculino delirante, yang com yang, yang para yang, onde ordena (!) que, após assassinar inocentes desconhecido(a)s, seu corpo seja lavado e envolto em lençol branco por mãos castas, que seja sepultado ao lado de sua mãe e que um fiel seguidor de Deus venha pedir a Jesus despertá-lo para a vida eterna*... Ora, Wellington, com perdão da inconveniência à tragicidade do momento, VÁ SE FODER. Ou, antes de fazer essa bobagem, fôra se foder. Porque sexo – o mergulho na matéria, na carnalidade – foi o que faltou para temperar de carinho sua existência. Nos comentários dos sites noticiosos alguns leitores moralistas e pretensiosos (muitos escrevendo em desagradável caixa alta) dizem que é “falta de Deus” e falta de repressão. Num certo sentido, pelo contrário, esses assassinatos são “excesso de Deus”, e de repressão. Ou, mais precisamente, excesso da idéia de um Deus fora de si (e dos outros) que exige a destruição do corpo para a elevação do espírito.
Como no caso do Bolsonaro – que está nas duas pontas do processo, porque é ele mesmo quem cria a culpabilidade e o crime, com o terror que semeia ao querer controlar o comportamento alheio, para depois vir exigir punição –, esses comentários sobre a “falta de Deus” vêm dos mesmos que trabalham para transformar a sociedade num inferno. E que conseguem encarnar em um doente mental como Wellington o próprio demônio – sim, o mal, com todas as letras, que advém do ódio do espírito impotente diante da força da carne. Não precisamos de um anticristo. O “meme-Cristo” dos hipócritas já é o próprio anticristo. Wellington é nosso primeiro assassino serial aleatório, violentamente impessoal no seu desespero pessoal, que nos aproxima das sociedades de formação protestante e islâmica. (Exceto por aquele playboy que atirou no cinema do shopping - mas era só isso, um playboy atirando no cinema do shopping, e não o primeiro "pobre sem mãe" da nossa história). Certa está Dilma quando fala da perda de “pequenos brasileiros”. Porque, além de roubar essas crianças de suas mães amorosas, os Wellingtons (e Bolsonaros, e Serras, e Edires Macedos) querem roubar da grande mãe pátria brasileira o futuro. Não conseguirão, nós te prometemos.
*Há uma idéia na carta de Wellington que parece estranhamente deslocada: a de que é preciso proteger os animais. Mas ele explica que é preciso proteger os animais porque eles precisam de mais carinho que os seres humanos... provavelmente porque nos animais não há distância entre corpo e espírito (porque não há espírito, ou se há é uma manifestação que não os aliena de seu corpo), ou seja, os animais seriam puros.
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